Efeitos sucessórios da reprodução assistida homóloga post mortem

Em que pese a lei civil assegure a presunção de paternidade em benefício dos filhos havidos por reprodução assistida, os direitos sucessórios a eles atribuídos é assunto um tanto nebuloso, até porque escapa ao modelo clássico de filiação, de constituição de parentalidade. Mas há que se ter em mente que, em sede de reprodução assistida, o consentimento é fator de legitimação ao mesmo tempo da filiação e da sucessão.

Atente-se, primeiramente, que a legitimidade sucessória é estabelecida pelo art. 1798, do CC, nos seguintes termos: “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão.” Entende-se como momento da abertura da sucessão, aquele em que ocorreu o falecimento do autor da herança, visto que o direito pátrio adota o princípio da saisine, segundo o qual, a transmissão do patrimônio aos herdeiros é automática.

Ora, na sua literalidade, o dispositivo parece dizer que a criança gerada a partir de gametas criopreservados, com mãe inseminada postumamente, será filha do “de cujus”, mas não terá direitos sucessórios. A interpretação nesses termos acaba por subtrair desse filho o direito fundamental à herança, previsto no art. 5o, XXX, da CF, esbarrando em manifesta inconstitucionalidade.

Afora isso e não menos importante é considerar a também inequívoca ofensa ao princípio da igualdade, maior concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, que não se compraz com o tratamento discriminatório à filiação calcado em sua origem, como se extrai do art. 227§6o da Carta constitucional.

Situação diversa é a sucessão que envolve embrião gerado em proveta na constância da união, ainda que implantado post mortem. Não se vislumbra possibilidade de lhe serem negados direitos sucessórios, visto que embrião é concepturo que, desde a fecundação possui o seu próprio genoma que o identifica e o torna único e irrepetível.

A propósito do tema, sustenta a insigne Prof. Stela Barbas que o embrião é vida humana, pois desde a fusão do óvulo com o espermatozoide já possui o seu próprio patrimônio genético completo, a significar que é possuidor de identidade genética própria que irá lhe acompanhar ao longo de toda a sua existência, considerando a autora que a fase embrionária é uma mera etapa do desenvolvimento humano. E resume: “O embrião é aquilo que eu já fui. ”

Pondere-se, ademais, que a relevância ética e jurídica do embrião é absolutamente diferente da que possuem os gametas, células germinais masculinas e femininas, embora estes também mereçam a adequada proteção porque não são coisas, tanto é assim que a Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, veda sua mercantilização,. E como não poderia deixar de ser, a Resolução 2294/2021 segue a orientação convencional, mantendo a proibição de comercialização dessas células, guardando conformidade com o art. 199§4o, da CF.

Vale registrar que, inobstante o vazio legislativo para disciplinar as relações jurídicas que emergem da utilização das técnicas reprodutivas, a Lei de Biossegurança, no art. 5o, refere que a utilização de embriões ou descarte depende da autorização dos “genitores”, ou seja, dos pais, daqueles que os geraram. A mesma posição adotou o Dec. 5591/ 2005, diploma legal que regulamentou a citada lei, o qual considera como genitores os usuários finais da fertilização in vitro (art. 3o, inc. XV). Genitores, entenda-se, pais biológicos.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, ( 2013,p. 459), assim se posicionam quanto a esse debate: “Não é demais reiterar a interessante discussão sobre os efeitos sucessórios decorrentes da fertilização assistida. Promovendo uma interpretação sistêmica dos comandos do art. 1.597, III e 1.798 do Código de 2002, diferentes conclusões surgem. Se já havia concepção laboratorial, quando do falecimento do genitor, o filho terá direito sucessório”, uma vez que o art. 1.798 é de clareza solar ao afirmar que a capacidade de suceder é reconhecida em favor de quem nasceu ou já foi concebido. Ora, não havendo diferenciação entre a concepção uterina ou laboratorial é forçoso concluir que ambas estão abarcadas, em homenagem ao princípio constitucional da igualdade entre os filhos (que é princípio de inclusão)2”. (grifei).

No sentido de reconhecer direitos sucessórios, vale citar o Enunciado 267, da III Jornada de Direito Civil CJF que concluiu ser aplicável aos embriões formados mediante o uso de reprodução assistida a regra do art. 1.798, do CC, de modo a incluí-los na ordem de vocação hereditária, sujeitos à disciplina legal da petição de herança.

Não se entende cabível, como defendem alguns que, para serem assegurados direitos sucessórios aos filhos nascidos da reprodução assistida póstuma, seja necessário recorrer à sucessão testamentária, nos termos do art. 1799, inc. I que permite sejam chamados à sucessão “os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir a sucessão; (…), em até dois anos seguintes à abertura da sucessão. Primeiro, porque tornaria inútil a presunção de paternidade prevista no art. 1597, III, do CC, limitando à produção de efeitos pessoais e negando os patrimoniais; Segundo, porque o dispositivo refere-se à prole eventual de terceiros e não do próprio testador; Terceiro, porque se acaso o genitor falece, repentinamente, antes de elaborar testamento, esses filhos ficariam excluídos de sua sucessão.

Paira polêmica em torno de prazo para que ocorra a concepção, que parte da doutrina entende deva ser de 2 (dois anos) por analogia com o prazo para a concepção da prole eventual, previsto no art. 1800§4o, do Estatuto Civil. A isso se opõe Maria Berenice Dias sob o ponderável argumento de que conferir segurança jurídica aos demais herdeiros não deve se sobrepor aos direitos hereditários do filho a nascer, haja vista que a ação de investigação de paternidade é imprescritível e a de petição de herança é de 10 anos.

A premência de legislação própria e abrangente é indiscutível. Os institutos e categorias clássicas do Direito não são adequadas à nova realidade. O embrião, embora ainda não seja pessoa, é ser humano em desenvolvimento, no aguardo de um útero para para que possa nascer. É preciso aproximá-lo da pessoa nascida para o efeito de lhe garantir proteção.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Claudia Maria Oliveira de. Uma breve reflexão sobre a reprodução assistida homóloga post mortem e seus efeitos no estabelecimento da parentalidade e no Direito Sucessórios. Revista do Ministério Público. no 90. Porto Alegre: AMP/RS, 2021.

BARBAS, Stela Marcos de Almeida. Direito ao Patrimônio Genético. Coimbra: Almedina, 2006. BARBAS, Stela Marcos de Almeida- Direito do Genoma. Coimbra: Almedina, 2007.

2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Família. V. 6. p. 599.

DIAS, Maria Berenice apud AUGUSTO, Daniela Moreira. Inseminação Artificial Homóloga Post Mortem e questões sucessória decorrentes. Belo Horizonte: Dialética, 2020.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Família. 9.ed. v. 6. Salvador: Jus Podivm, 2017.

MEIRELLES, Jussara Maria Leal. A sucessão do embrião. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (coord). Arquitetura do Planejamento Sucessório. 2.ed. Belo Horizonte: Forum

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